Tequila Radio


Bad as Me (Tom Waits, 2011) by Bernardo Brum
novembro 17, 2011, 10:38 pm
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por Bernardo Brum

“Eu sou a última folha na árvore. O outono levou o resto, mas eles não me levarão”, é o que afirma Tom Waits em Last Leaf, uma das últimas canções de sua mais nova obra-prima, Bad as Me. Constatação óbvia, mas necessária de um artista que, dentre tantos outros que primavam pelo caminho do pouco óbvio – Frank Zappa, Captain Beefheart, Screamin’ Jay Hawkins etc. – foi um dos poucos que sobreviveram. Ignorado, estranhado, taxado de louco, bizarro e hermético. Aos sessenta e dois anos, ainda é anacrônico como nunca.

Ainda no seu estilo inimitável – ponto de convergência entre rock, blues, jazz, folk, tango, industrial, vaudeville e tudo que é interessante, curioso e marginal – adotado de forma definitiva desde que se casou com sua parceira musical Kathleen Breenan – produtora do disco junto a Waits, Bad As Me é aquele raro tipo de disco multifacetado que jamais dispara para todos os lados – é ao mesmo tempo diverso e autoral. É infernalmente pesado, tem a delicadeza de uma pluma. Expressa a raiva dos oprimidos e lamentos de miseráveis. Sua voz e postura performáticas transitam facilmente entre a fanfarronice alcoólica, entre a paixão sacra, luxuriosa e proibida, e o desespero derrotado e indignado.

Pragmático em sua constante metamorfose, o que move Waits não é a transcendência, mas a redenção que só estradas, bares e conversas trazem. Aquela redenção que só romances fracassados, brigas estúpidas, pequenos medos e acontecimentos irrelevantes ensinam. O beatnik músico – discípulo da selvageria poética de um Ginsberg e da inquietação de um Kerouac e da perpiscácia ébria e maldita do honorário velho safado Bukowski  – passeia por vários contextos, e pisa em todos eles ao mesmo tempo. Morde e assopra, beija e grita ao mesmo tempo.

Mesmo com sua visão pessimista e debochada do mundo, Tom ainda é um idealista, por mais irônico que esse paradoxo seja. Está sempre querendo fugir, mudar, reconfigurar: em Chicago, diz que “Não teremos que dizer adeus se todos fugirmos/Talvez tudo esteja melhor em Chicago”. Opera em todos os níveis, inclusive o afetivo; em Back in the Crowd, pede a quem quer que seja endereçada a música que “se você não quer o meu amor/não me faça ficar”. A vontade de sair da rotina e do conformismo de qualquer jeito também é expressa no delicado jazz Kiss Me, onde o crooner Waits evoca Louis Armstrong para propor: “Eu quero que você me beije como uma estranha mais uma vez/Eu quero acreditar que nosso amor é um mistério/Eu quero acreditar que nosso amor é um pecado”.

E há, claro, Bad as Me, a dicotômica faixa título. Evocando imagens estranhas, urbanas e familiares (uma chave perdida, uma carta de Jesus na parede do banheiro, detetives insones, barcos que não afundam), Tom cria dois personagens, eliminando a distância entre eu e seu duo: “Você é o mesmo tipo de mal que eu”. Recusa a lógica existencialista de “os infernos serem os outros”. Somos todos miseráveis no mesmo barco da vida (e como dizia em seu álbum Blood Money, “a miséria é o rio do mundo” – e talvez o nosso sustento venha dela), todos em busca de um significado maior, de um ponto final – de um lar que talvez jamais encontremos. E se Tom é condenável por perceber e aceitar isso, o interlocutor compartilha do mesmo tipo de maldade – da tragédia e do cinismo de ser humano.

Em um álbum plural como Bad as Me, há tanto espaço para o falsete em Talking at The Same  Time – que com seu ritmo cadenciado expressa profundo desconforto para o mundo – quanto para a sua monstruosa e tradicional voz, como a galhofeira e dançante Get Lost, uma verdadeira fuga do tradicional escapismo da música pop (“Tempo não quer dizer nada/Dinheiro menos ainda/(…)/Eu quero ir me perder”). As duas vêm na sequência da segunda canção, Raised Right Men, que com o marcado baixo funky de Flea e com seus picos no meio de um ritmo incerto, afirma que não existem pessoas bem criadas o suficiente nesse mundo. É o lado rústico, grosseiro e desencantado do álbum, que comenta tanto a falta de decência do ser humano em grupo, no geral quanto a falta de sorte e afeto mútua.

O lado agressivo de Bad as Me é representado tanto em Satisfied (é Tom conjugando sob o mesmo teto o rythm ‘n’ blues primitivo da guitarra de Keith Richards e a pesada esquisitice do baixo de Les Claypool, do Primus) quanto na apocalíptica Hell Broke Luce, uma literal porrada massacrante, onde despida a ironia, só sobra um vômito agressivo de repugnância sobre o mundo (“Eu tinha uma boa casa, mas eu a deixei/A porra daquela grande bomba me deixou surdo” e “Como é possível que os únicos responsáveis por criar esta bagunça/Estejam com suas miseráveis bundas presas às mesas deles”). Para Waits, a fuga é iminente: a civilização é um barco em pleno naufrágio, e quem não nadar logo para longe afundará junto.

A sensação de outcast, de pária e desajustado, é recorrente por todo o álbum: se Satisfied afirma que Tom arrancará alguma satisfação da vida antes de ir embora, a balada Face to The Highway cria um mundo de interdependências apenas para afirmar no refrão que “eu virei minha face para a estrada/e darei as costas para você” e Pay Me é sucinta em seu tom desafiador e sua sonoridade à lá Rain Dogs providenciada pela mistura de acordeão, guitarra e violino: os versos iniciais dizem nada menos que “Me pagaram para não voltar para casa/Me deixando chapado/Eu não irei correr”… A pluralidade de sensações, o antagonismo de cada um nós para com nós mesmos e com os outros. O disco Bad as Me veio não para explicar e trazer sentido, mas para confundir, desorganizar, questionar, virar a música que estamos convencionados a ouvir de cabeça pra baixo.

O tom geral das letras mostra que para Waits, não há nada pior do que a estagnação, a sensação de estar parado e nunca progredir. Aqueles que sobrevivem à selvageria desse mundo (como diz o título de um disco seu “Bone Machine”, vivemos dentro de uma máquina de moer ossos) são poucos, excêntricos na mesma medida em que são vivos – ele quer beijar sua companheira de tantos anos como uma estranha, voltar a se confundir com a população, abandonar tudo e voltar para a casa, fugir para a nostalgia, ir embora, sumir e sente repulsa e ao mesmo tempo pena do que é coletivo, do que não é singular, enxergando-os como uma multidão de vozes indefiníveis que jamais será capaz de ver que todos compartilham do mesmo mal e da mesma delícia.

Essa viagem por toda carreira de Tom – desde os tempos melancólicos de Closing Time e The Heart of Saturday Night, à metafísica estranha e ébria de Swordfishtrombones, Rain Dogs e Frank’s Wild Years e a agressividade seca, bruta e niilista e ao mesmo tempo frágil lamuriosa de Bone Machine e Mule Variations – tudo isso resumido em um disco, alcança seu final na jazz-ballad New Year’s Eve, onde em sua letra ditada em pleno fluxo de consciência porém guiada com maestria em suas emocionadas linhas vocais, pregando aquele certo momento de união das pessoas mais miseráveis nos momentos mais difíceis. Em meio a vários fatos narrados pelo eu lírico, há espaço para que ele lembre que “Era dia de ano novo/E todos nós começamos a cantar:/Não deveria todo conhecimento ser esquecido/E nunca trazido à mente/Não deveria todo conhecimento ser esquecido/Em nome dos bons e velhos tempos?”. Ele conclui que tudo deve ser esquecido, nada deve ser trazido à tona. O passado não deve ser remoído, deve-se olhar para a frente.

No próximo ano, todos seremos melhores. E tudo dará certo, queremos acreditar – ainda que fé na beleza seja tão difícil na era da razão. Alguns de nós, ano que vem, não estarão mais aqui. Outros ainda resistirão e continuarão a cantar as dores inaudíveis de um mundo barulhento demais – como Tom, a última folha do outono e a primeira da primavera, constantemente gastando a carne e renovando o ser e tantos outros. São os “frágeis senhores da guerra”, ele, Dylan, Lou Reed, Nick Cave, Leonard Cohen, Neil Young – gente que perdeu o jogo, mas que ainda joga de “teimoso” na grande roda. Os “rain dogs”, perdidos na chuva ao perderem o próprio rastro, que querem o quanto antes voltar para casa – tanto a casa do seu período infante, aquela dos sonhos e das memórias, quanto a metafórica, a unidade, Deus ou a poeira de estrela, você decide como chamar.

Isso é Bad as Me: a fuga, a diversidade e a desorganização em nome da unidade, do sincretismo, de alguma fé absurda no inverificável. Um chute na canela da percepção arbitrária de mundo. O tipo de música que só Tom Waits sabe fazer, afinal de contas.

5/5

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Ficha técnica:

Bad As Me (Tom Waits) – 2011 – EUA. Integrantes: Tom Waits (vocal, guitarra, piano, percussão, banjo) e outros, incluindo Keith Richards, Flea e Les Claypool.

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Tracklist
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  1. Chicago
  2. Raised Right Men
  3. Talking at The Same Time
  4. Get Lost
  5. Face to The Highway
  6. Pay Me
  7. Back in The Crowd
  8. Bad as Me
  9. Kiss Me
  10. Satisfied
  11. Last Leaf
  12. Hell Broke Luce
  13. New Year’s Eve

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The Heart of Saturday Night (Tom Waits, 1974) by Bernardo Brum
julho 26, 2011, 9:21 pm
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por Bernardo Brum

Qualquer pensador tem seu ideal de plenitude existencial. Nos ensinamentos de Siddartha Gautama, é a liberação de todo o sofrimento através da compreensão e exercício das Quatro Verdades Nobres. Para Aristóteles, ela é alcançada através da prática do bem. Nietzsche escreveu sobre o conceito do Super-Homem. Kant falava do imperativo categórico.

E o que seria a felicidade, o pote de ouro no fim do arco-íris, para Tom Waits? Ele já a chamou de muitos nomes e aqui ele chama de The Heart of Saturday Night, seu segundo registro que mesmo ainda calcado no smooth jazz, já começa  a demonstrar características que tornariam sua persona excêntrica algo único na história recente da música – como o início do surgimento da voz bêbada que acabariam desembocando naquela estranha voz gutural desenvolvida a partir da segunda metade da década de setenta e desde então nunca mais abandonada.

Os temas continuavam praticamente os mesmos do debut Closing Time:  a obsessão em retratar a vida  dos indivíduos “perdidos” das grandes metrópoles. A escória, se quer saber. O tipo baixo e invisível de gente. Tom quer dar voz à eles. O que eles esperam da vida? Para eles, o que e plenitude? Se rebuscadas figuras da história das idéias discutem há milhares de anos e não conseguem entrar em concordância, conseguiriam os ébrios e vagabundos acrescentar algo ao debate?

Com essa voz herética e fanfarrona das ruas que Tom Waits, com seu conceito único de fazer música , destila seu jazz bêbado entre frases muito ilustrativas sobre a sua visão particular de mundo: desde pequenas epifanias sobre o medo de perder o prazer de viver uma existência confusa – “Se eu exorcizar meus demônios, pode ser que meus anjos também vão embora” em Please Call Me, Baby -, até pura alucinação lírica bêbada (“E eu estou cego por néons/Não tente mudar minha melodia/Por que acho que ouvi um saxofone/Eu estou bêbado na lua”, diz em Drunk on The Moon).

Claro, como sempre, não são só essas flechadas de existencialismo tão simples porém tão complexo que ele lança nas nossas orelhas – ainda há  bastante do romantismo lamurioso de Closing Time em músicas como San Diego Serenade, onde o eu lírico, ainda um neófito no coração e nas ruas, paga suas dívidas com tudo que o fez crescer e conhecer mais momentos da vida (em antecanto, diz coisas como “Eu nunca disse eu te amo até te amaldiçoar em vão”, “Eu nunca vi a luz do luar até ela refletir no seu peito”, “Eu nunca ouvi a melodia, até precisar de uma canção”) ou em Shivers Me Timbers, verdadeiro resquício do espírito beatnik, uma música sobre abandonar tudo, não conhecer ninguém mas seguir em frente com isso e, quem sabe, até se sentir leve (“meu corpo está em casa, mas meu coração está no vento”).

O abandono quase total do folk e a preferência pelo jazz é bem notado em músicas como na cadenciada abertura New Coat of Paint, na malandra Diamonds on my Winshield e na verdadeira trilha sonora de bar Fumblin’ with the Blues, mas ainda sobrevive na faixa-título, The Heart of Saturday Night, um verdadeiro resumo do pensamento que Waits tem tentado erigir por toda a sua carreira artística:  “Bem, você acelerou/Atrás do volante/Com o seu braço ao redor de seu docinho/No seu Oldsmobile/Descendo rápido a avenida/Você está procurando pelo coração de sábado à noite”, onde Tom descreve o tipo de pessoa com o qual se identifica e vive tentando descrever: classe média-baixa, entediantes e entediados durante a semana, mas caçadores de uma emoção bêbada quando chega o sábado: é o tal nirvana dos vagabundos, sem dogma específico para seguir, mas sempre com um objetivo comum – alcançar aquele instante único, e sem palavras. Pode parecer complicado, mas é simples de entender, assim como tocante: não à toa, é uma das músicas mais regravadas do artista .

A maioria das letras de Waits descreve que, talvez, a existência afinal não seja plena – apesar de ser muito deliciosa em certos momentos onde dor e tristeza não parecem existir, apesar do medo  ser uma figura constante. O conflito entre duas forças antagônicas – sexo e morte – que existe em tais aventuras semanais é expresso em estrofes como “Se apaixonar é uma brisa e tanto/Mas ficar em pé é difícil para mim/Eu quero te apertar mas tenho tanto medo de quebrar sua coluna” em Fumblin’ with the Blues, mas que também tem seu lado esperançoso – “Vamos botar uma nova camada de tinta/nessa cidade velha e solitária/(…)/Você põe um vestido, querida/Eu uso uma gravata/Vamos rir dessa lua injetada de sangue/Em um céu de vinho”, canta em New Coat of Paint.

O projeto estético de Tom estava um tanto encaminhado em seu segundo disco – a amargura de alguém em eterna ressaca de Closing Time logo assumiu de vez seu lado filósofo de bar em seu segundo registro. Ainda que as idéias tenham amadurecido, ainda havia algo daquele homem carente e embriagado da estréia discográfica.

Mas ele começava a sonhar mais alto em seu conceito de música. Ouvir o disco em sequência ao primeiro denota alguém que, mesmo ainda inseguro certas vezes sobre que estilo adotar (insegurança que trasformaria em pura vanguarda anos depois) para descrever as histórias e evocar as figuras, já sabia bem quem queria atingir.

E que tipo de debates queria inflamar, afinal fora aqueles indivíduos que querem acumular grande capital individual, almejar distribuição de renda igualitária, procurar a libertação individual através de doutrinas e idéias ou buscam melhorar o mundo que vêem através da escrita de conceitos, há também um que, como é descrito em The Ghosts of Saturday Night,  “procura dentro de sua capa/por suas últimas guimbas de Kents/Enquanto sonha com a garçonete com olhos de Maxwell House/E coxas de marmelada com cabelos louros mexidos”. Uma idéia de plenitude estranha e pouco usual, mas que não pode ser ignorada; quem são esses derrotados que almejam tão pouco da vida e tem sonhos tão pouco modestos? Cães vadios ignorados por muitas doutrinas, ideias e dogmas; mas tão velhos quanto o mundo; e tão líricos e complexos quanto a música de Waits.

4/5

The Heart of Saturday Night (Tom Waits) – 1974 – EUA. Integrantes: Tom Waits (vocais, piano, violão), Jim Hughart (contrabaixo), Pete Chrstlieb (sax tenor), Bill Goodwin (bateria) e Bob Alcivar (arranjador).


Tracklist:

Lado A:

1. New Coat of Paint
2. San Diego Serenade
3. Semi Suite
4. Shivers Me Timbers
5. Diamonds on my Windshield
6. (Looking For) The Heart of Saturday Night)

Lado B:

1. Fumblin’ with the Blues
2. Please Call me, Baby
3. Depot, Depot
4. Drunk on The Moon
5. The Ghosts of Saturday Night (After Hours at Napoleone’s Pizza House)


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Closing Time (Tom Waits, 1973) by Bernardo Brum

por Bernardo Brum

A fumaça de cigarros invade tudo. As roupas cheiram a nicotina, os dedos estão amarelados, o mundo foi impregnado com o cheiro de cerveja. As pessoas não sabem a hora que chegaram, também não sabem quando vão embora. Estão perdidas, bebendo e solitárias. Esse é o mundo de Tom Waits. Os heróis zarparam para longe, os vilões comandam tudo do alto de arranha-céus, os exemplos de vida só estão na televisão. Quem sobrou sai de um dia exaustivo de trabalho e vai tentar a sorte no bar.

Uma visão pessimista do mundo? A vida com certeza deu um golpe em muita, muita gente que não se recuperou até hoje. E é do clima de puteiro vazio, de bar fechando, de mundo cinza, da cruza entre a sofisticação delicada do West Coast Jazz e da melancolia minimalista em voga no início dos anos 70 (graças à discos como John Wesley Harding, de Bob Dylan e muitas das composições do Álbum Branco, dos Beatles, o folk estava de novo em voga – saía o caos psicodélico de 1967, entravam os Byrds, Eagles, o Grateful Dead fase American Beauty etc.) que saíram Tom Waits e Closing Time.

Longe da experimentação absurda que Waits aprontaria anos mais tarde (onde o mínimo detalhe era virado de cabeça para baixo na missão de compôr algo realmente dissidente), o primeiro registro de Tom é um disco de tom abertamente melancólico, para baixo, já longe do clima paz-e-amor e do trinômio sexo-drogas-rock-and-roll desde o primeiro momento.

Como pegar uma carona com o solitário Marlowe de Chandler, testemunhar os vagabundos de David Goodis terem um embate etílico existencial, ver os pinguços de Bukowski vertendo uísque sentados na sarjeta; Tom Waits evoca em suas notas uma atmosfera mais escura (ou noir, como queiram), de ruas iluminadas apenas pelas luzes de postes e preenche o painel pintado com gente solitária e perdida, que esqueceu o caminho para casa, que começam e logo terminam amores sem futuro com pares tão perdidos quanto e logo todos já estão no balcão de novo para pedir a próxima dose de Jack.

Longe de uma auto-comiseração gratuita, a visão de mundo que Waits constrói, alheia aos grandes problemas políticos, volta o olhar para a América profunda e arrasada. Tom passa longe do desespero; a tônica deste álbum é a derrota, pura e simples. Doze hinos dos losers, que questionam o que, afinal, estamos fazendo nesse mundinho sem-vergonha.

O cantor escolheu um repertório bem homogêneo para o seu álbum. Poucas são as músicas que sairão do ritmo cadenciado, como é constatado desde a abertura, a belíssima “Ol’ 55”, balada urbana insone refletindo como é, com o sol nascendo, deslizar pelas estradas de asfalto dirigindo um carro velho, tendo como a companhia a sorte e nada mais, mas sentindo-se vivo. Simplesmente por ainda ter forças o suficiente para pisar no acelerador de uma bicheira gasta à procura do próximo canto enfumaçado e do próximo amor fracassado.

“I Hope That I Don’t Fall In Love With You” e “Martha”, refletem outra condição dessa gente feia, triste e sem atrativos para os que não compartilham das suas dores: os corações distantes demais para conversarem. A primeira, uma trístissima declaração de amor não-concretizado. Bares enfumaçados, luzes fracas e belas garotas que nos olham de vez em quando – mas qual o sentido de tentar de novo? O que resta é outro arrependimento por não ter tentado mais uma vez. Refletido na segunda, canção nostálgica sobre um relacionamento terminado. Não é em momento algum ressentida, mas é cheia de remorso contido. Dá para perceber que poucos teriam a delicadeza de chorar sem tentar machucar. Não dá para esquecer que este não é um álbum de ataques recalcados. É um álbum acima de tudo de lamentos.

“Martha” indica que os tempos passaram, assim como “Old Shoes (& Pictures Postcards)”, mas também há “Little Trip To Heaven (On The Wings of Your Love)”, um ligeiro êxtase dissimulado de canção de amor inocente que constata que, afinal de contas, uma bela dona sempre nos fará sorrir por pior que o emprego esteja, por maior que seja a cacofonia da noite, ou o egoísmo de todos os palookas (termo com o qual Tom define as pessoas perdidas porém medíocres; afinal, os derrotados são uma espécie muito unida, depois de tudo). E também “Ice Cream Man”, uma pequena troça rockeira à la Screamin’ Jay Hawkins cheia de trocadilhos sexuais; a noite também tem senso de humor mordaz.

Humor este também que é uma marca notória do observador Tom Waits. Humor irônico, que passa quase despercebido, encontrado em imagens como a Senhora Sorte de “Ol’ 55”, a garota com o sol nos olhos de “Old Shoes”, a lua cítrica de “Grapefruit Moon”, as gracinhas do Sorveteiro (“Ice Cream Man”) e a conversa  patética e justamente por isso belíssima com o operador da companhia telefônica de “Martha”; poucos sabem conciliar tristeza com gracejos como Tom, e isso que o torna tão diferente da maioria dos compositores.

A filosofia de bar, onde a vontade de potência é uma piada de banheiro e a única representação que conseguimos ver é a de um Edward Hooper em estado etílico pintando gente arrasada porém bêbada e gargalhando, tem lá o seu lado ridículo, Tom sabe disso. Extrair beleza disso é um dom para poucos. Enquanto a maioria dos palookas ri, Waits tem compaixão, pois está no mesmo barco. Se, como afirmou anos depois, “a miséria é o rio do mundo”, tudo o que nos resta é continuar velejando com um maço de cigarros pela metade e uma garrafa de um destilado qualquer já no fim.

Desde o primeiro momento, desde o primeiro segundo da primeira música do primeiro disco, o grande cantor de bares e inferninhos, que realmente entende a essência deles tão bem a ponto de fazer arte com isso, já tinha uma tônica completamente definida. O autor teria uma identidade mutante ao longo dos anos (como atesta a multifacetada obra-prima “Rain Dogs” ou a raiva proto-industrial de “Bone Machine”), é verdade, mas o universo já estava lá. Capaz de nos fazer chorar e em seguida sorrir com o canto do rosto com a mudança de um verso ou no caminho até o próximo acorde.

Caminho muitas vezes longo, às vezes sofrido, às vezes trôpego, e com sua certa dose sacana; Este é o bar de Tom Waits, que para a felicidade dos sentimentos e dos fígados dos cachorros que se perderam na chuva, ainda não fechou. No meio de um mundo arrasado, ele ainda está lá, firme e forte. Justo quando precisamos admirar a pequena princesa deslocada,  de discutir os temas mais intrínsecos à natureza humana entre bitucas e goladas, ir embora com a manhã, voltar no início da madrugada e então repetir tudo. Mais uma vez.

5/5

Closing Time (Tom Waits) – EUA, 1973. Gravadora: Asylum. Integrantes: Tom Waits (vocal, piano, celesta, guitarra, composições), Delbert Bennett e Tony Terran (trompetes), Sheep Cooke (guitarra, b. vocals), Peter Klimes (guitarra), Jesse Ehrlich (violoncelo), Bill Plummer e Arni Egilsson (baixo), John Seiter (bateria e b. vocals).

Tracklist:

Lado A:

  1. Ol’ 55
  2. I Hope That I Don’t Fall In Love With You
  3. Virginia Avenue
  4. Old Shoes (& Pictures Postcards)
  5. Midnight Lullaby
  6. Martha

Lado B:

  1. Rosie
  2. Lonely
  3. Ice Cream Man
  4. Little Trip To Heaven (On The Wings of Your Love)
  5. Grapefruit Moon
  6. Closing Time (Instrumental)

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