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Maggot Brain (Funkadelic, 1971) by Bernardo Brum
junho 29, 2011, 6:43 pm
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por Bernardo Brum

“A Mãe Terra está grávida pela terceira vez
Por vocês todos que a emprenharam
Eu saboreei os vermes na mente do universo
Eu não fiquei ofendido
Por que eu sabia que tinha que sobrepujar isso tudo
Ou afundar na minha própria merda
Venha, Cérebro de Verme
Continue, Cérebro de Verme”

É com esse discurso, fundindo conceitos como misticismo, consciência social, ecologia e revolução, que o insanamente genial (ou genialmente insano?) George Clinton abre a faixa título do álbum mais consagrado do Funkadelic, banda que chefiava junto ao Parliament – e o mais famoso deles. Maggot Brain, a música e o álbum, são verdadeiros pontos de convergência entre psicodelia, funk, rock e soul – os estilos que estavam em plena ascensão mercadológica e artística à época.  Os dez minutos da música que abre o disco atesta isso – uma verdadeira suíte soul viajante totalmente instrumental, projetando um novo som e uma nova mentalidade das raízes profundas da terra até os confins distantes do cosmos.

A mentalidade revolucionária, nos idos anos 60/70, era bem mais forte, presente e radical do que hoje. Era uma verdadeira guerra de “Nós”, os jovens rebeldes, a classe trabalhadora explorada, as minorias oprimidas, a classe artística censurada, contra “Eles”,o governo americano, as famílias de subúrbio, os valores WASP (brancos, anglo-saxões e protestantes) e a mentalidade belicista que enviava a juventude americana para a guerra do Vietnã, ironizada por Jimi Hendrix em 1969 quando o mesmo executou uma versão distorcida e recheada de sons de metralhadoras e bombas do Star-Spangled Banner, o hino nacional norte-americano.

É justamente o espírito e as guitarras de Hendrix que vemos na faixa-título. Ruídos estranhos encontram a cozinha banhada no ritmo doce do soul que logo abrem espaço para as guitarras distorcidas e berrantes. Descrita muito apropriadamente pelo crítico Greg Tate como o A Love Supreme do Funkadelic, a faixa título parece ser um encontro dos mantras de Acknowledgement de Coltrane com a doidera espacial de Jimi em Third Stone From The Sun.

O jazz marginal e a psicodelia contestadora foram influências capitais nesse novo funk, o grito de revolta à maneira de George Clinton: já haviam passado os protestos folks líricos de Dylan, afirmando que “os tempos estão mudando” e que “a resposta está no vento” havia um tempo; e Maggot Brain é justamente uma dessas manifestações de liberdade prenunciadas por Bob: é tanta coisa e é tão único ao mesmo tempo que é produto indissolúvel à sua época. O Funkadelic era atento às questões raciais dos negros: depois de Rosa Parks, Luther King e os Panteras Negras, a década de setenta foi outro passo fundamental em nome da construção de identidade e busca pelo reconhecimento de indivíduo: a arte da época pulula de exemplos: Marvin Gaye, Curtis Mayfield, Isaac Hayes, o blaxploitation no cinema, atores como Pam Grier e Richard Roundtree, artistas plásticos como Basquiat…

Antes da última faixa, a quase tão longa e tão radical quanto Wars of Armageddon, teremos grooves negrões de respeito como Can You Get To That e Back In Our Minds o proto-rap rockeiro de Super Stupid, guiada por um riff de guitarra matador; ou ainda o funk psicodélico de Hit and Quit It -um racha assoalho que se choca com teclados lisérgicos. Onde, senão em um disco de George Clinton, encontrar uma canção de funk com um solo de órgão?

Há ainda a descaradamente socio-política You and Your Folks, Me and My Folks, que prega o amor entre os povos em um ritmo dançante. Com um performance arrasadora, Billy Bass Nelson se esgoela e se entrega em versos como “Se em nossos medos, não aprendermos a confiar uns nos outros/E em nossas lágrimas, não aprendermos a dividir com o irmão/Você sabe que o ódio irá continuar a se multiplicar/E você sabe que o homem continuará a morrer”; a conjugação perfeita entre política e existencialismo, entre os grandes ritmos do século vinte, entre  suor e lágrima: um resumo não apenas dessa canção, mas de todo o espírito que rege o disco.

Espírito este que, nascido da decepção com o establishment, das batalhas campais em nome dos diretos civis (que atingiram de radicais do underground como Melvin Van Peebles e Lou Reed até outsiders da elite como Stanley Kubrick e John Lennon) influenciou e foi influenciado ao longo de uma década recheada de tensões socio-políticas – o fracasso no Vietnã, o escândalo Watergate, as ditaduras latinoamericanas, a Guerra Fria-, existenciais (os papos sobre a Nova Era, a Era de Aquário, a profusão de novas crenças orientais, africanas e da Europa profunda, inclusive as pagãs – de enorme influência para grupos como Black Sabbath, Led Zeppelin e Uriah Heep, por exemplo), raciais, comportamentais e sexuais (a prisão do líder contracultural John Sinclair por incentivar o consumo de maconha e o sexo livre, que culminou em um protesto de grande parte do meio artístico incluindo John Lennon, a batalha entre a polícia e os Panteras Negras, a queima de sutiãs da Woman’s Liberation, a luta de Harvey Milk e da Rua Catro pelos direitos homossexuais, a tentativa de homicídio do pornógrafo Larry Flint) e que acabou por mundar profundamente a mentalidade americana e redefinindo conceitos sobre a liberdade de expressão.

Maggot Brain, a obra prima de George Clinton, um gênio tão importante para a música negra quanto James Brown, Ray Charles ou Sly Stone é contracultura pura, símbolo da luta contra uma mentalidade restritiva e sufocadora, da busca por uma liberdade em todas as acepções possíveis da palavra. Cecília Meirelles disse uma vez, baseada no conceito de autonomia de Immanuel Kant “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há quem a explique, nem ninguém que não entenda”. Liberdade essa que, se não pode ser explicada com mil palavras, pode ser sentida com alguns acordes. Como todos aqueles contidos em Maggot Brain. Libertário, libertino e libertador. Ou, simplesmente, um disco bem ao gosto de George Clinton.

5/5

Ficha técnica: Maggot Brain (Funkadelic) -1971 – Integrantes: Eddie Hazel e Tawl Ross (guitarras), Bernie Worrell (teclados), Billy Bass Nelson (baixo), Tiki Fulwood (bateria), George Clinton, Fuzzy Haskins, Calvin Simon, Grady Thomas, Ray Davis, Garry Shider e banda (vocais)

Tracklist:

Lado A:

  1. Maggot Brain
  2. Can You Get to That
  3. Hit It and Quit It
  4. You and Your Folks, Me and My Folks

Lado B:

  1. Super Stupid
  2. Back in Our Minds
  3. Wars of Armageddon

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4 Comentários so far
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caramba. descreveu bem a ‘vibe’ do disco. funkadelic é demais.

Comentário por Fábio Visnadi

GOTTA HIT IT AND QUIT IT!

Comentário por felpola

fodástico.

o solo do Hazel na faixa de abertura é sensacional. a história é que o Clinton chegou pro Haze e disse: “toque como sua mãe tivesse acabado de morrer”. mas o disco todo é ótimo.

Comentário por Augusto C.

É ótimo a descrição do LP do Funkadelic… e Augusto C. legal a historia sobre o solo incrivel do Hazel… Marggot Brain por pura irônia também forá a música que tocou no funeral do proprio Eddie Hazel…

Comentário por Jill M.




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